ÚLTIMA OPÇÃO

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– Vocês estão mortos, mas vai ficar tudo bem.

Por mais docemente que aquela mulher proferisse tal frase, pontuando no final com um sorriso enquanto os observava com aquelas encantadoras amêndoas protegidas pelos mais longos e delicados cílios que alguém podia ter, o surrealismo daquela sentença os calava e trazia-lhes um banho de dor. Estarem mortos era inaceitável pelo que acreditavam.

– Só peço que esperem mais alguns minutos, os demais já foram atendidos, pois todos já tinham feito suas escolhas, mas no caso de vocês dois é um pouco mais complicado. – disse a moça olhando para o papel na prancheta – Mas não é incomum, já temos um procedimento padrão para isso. Bom, esperem mais um pouco e eu volto. Se quiserem podem se servir de chá, café ou biscoitos de água e sal. Até daqui a pouco.

Ela saiu e deixou os dois homens boquiabertos, sentados em um dos sofás desgastados, em volta de uma pequena mesa de centro com algumas revistas velhas, de capas rasgadas e conteúdo extremamente fútil que circundavam uma bandeja metálica com duas garrafas térmicas, copos de plástico empilhados e embalagens de biscoito de água e sal entreabertos. Após a saída dela, e quietos por alguns segundos, enquanto tentavam compreender a frase que ecoou naquela sala de luzes brancas. As paredes que precisavam de uma nova pintura e uma janela com venezianas fechadas e sujas de pó testemunhavam a mais natural incredulidade dos dois recém-mortos.

– Isso é impossível! – disse o homem com o as mãos sobre a face, esfregando-as sobre os olhos num movimento descendente que esticava as pálpebras inferiores e deixava-o com um olhar esgazeado. Sem direcionar as vistas, mas somente no tom de voz, repetia ao colega sentado ao seu lado. – Eu não posso estar morto, ainda mais ao seu lado Sotero.

– Rapaz, se a gente tá morto eu num sei. Eu nunca acreditei em vida após a morte, mas que a situação é diferente por demais, isso é. – comentou o seu interlocutor, voltando a falar somente depois de uma pausa provocada por uma inspiração mais profunda. – Qual o problema de morrer ao meu lado?

A verdade era simples. Em vida o homem não nutria muita paixão por Sotero, pra não dizer que tinha certo ódio. Quando lhe perguntavam, sempre arguia que tinha certo desconforto com relação às falas dele, mas a verdade é que sentia uma raiva enorme daquele jeito dissimulado e de suas falas fiteiras, pretensiosas. Sotero era, pra ele, o típico hipócrita.

– Cala a boca Sotero!

– Rapaz, mas o que te pega? É óbvio que a gente não morreu, não existe isso de vida após a morte, a gente deve estar em algum hospital, alguma experiência. Eu não me lembro de como, mas a gente estava no mesmo ônibus e agora está aqui. ‘Cê’ sabe que existe muita coisa que os caras fazem com as pessoas e ninguém fica sabendo, logo a gente vai saber o que é. Não se atormente.

Um olhar de raiva e desprezo era milimetricamente direcionado a Sotero. O homem o odiava, o fato é esse. Havia um fundamento nesse ódio, Sotero era desagradável com ele, sempre buscava chamar a atenção, fazia questionamentos ardilosos e sempre que podia proferia perto dos amigos ou de estranhos frases que deixavam o homem em condição desfavorável. Em geral, eram frases dúbias e de conteúdo torpe que, sabidamente, o irritava, e mais que isso, eram caluniosas. O que irritava o homem era o fato de Sotero não ser confrontado pelos demais, por ele ter esse comportamento oleoso que agradava uma parte da plateia com que obrigatoriamente sempre estavam. O fato dele ter dito, embriagado, que tivera relações sexuais bem selvagens com a musa do homem era algo a ser considerado nas motivações do ódio. Saber que se tratava de uma mentira de Sotero, era ainda pior.

Enquanto o odiado se esparramava pelo sofá, o homem se levantava com pensamentos distantes. Pensou em olhar pela janela, mas do corredor apareceu a moça que pediu-lhe que não fizesse isso. Realmente aquilo lhe era estranho, havia pensado apenas em olhar pela janela, mas não tomou movimento nesse sentido. Ser repreendido antes da ação era algo que talvez corroborasse ainda mais com o absurdo da situação. O homem voltou-se a sentar, mas em outra posição do sofá, pois não lhe agradava estar tão próximo de Sotero.

Alguns minutos de silêncios distintos se firmaram no ar. O silêncio preguiçoso de Sotero encobria e tumultuava o silêncio irritado do homem. É difícil precisar quanto tempo durou aquilo, mas para o homem parecia algo em torno de meia hora; para Sotero uma quinzena de minutos, mas a verdade é que não perduraram mais que três, até que novamente recomeçassem um diálogo.

– Rapaz, se estamos mortos eu nem me incomodo. Se existe então algum troço depois da morte, fazer o quê? Pelo visto ‘num’ é tão ruim assim.

– Cala a sua boca Sotero, você sempre se disse ateu. Vai agora começar a falar que acreditava em vida após a morte?

– Mas olhe, você também sempre se disse ateu e está aqui.

– É exatamente por isso que eu não compreendo o que está acontecendo. – fez uma pausa – E eu sempre fui agnóstico.

– Te falta rebeldia rapaz, tem que ser ateu como eu, que vai lá e mete a boca.

O homem olhou para Sotero e pensou: como aquele cara de 20 e poucos anos, que dependia da ajuda financeira do irmão prá tudo, que nunca foi obrigado a tomar decisões, podia falar que lhe faltava rebeldia? Tinha vivido uma infinidade de situações, enfrentado família, chefes, autoridades e levava uma vida surrada dos 20 até os 40 e poucos anos, para agora ter que ouvir de um gabola que lhe faltava rebeldia. Era demais pra ele e, pausadamente, com os olhos fechados e uma pronuncia sonoramente clara, disse:

– Sotero, pela integridade dos teus dentes, cala a sua boca.

As palavras se replicaram no ar e preencheram o vazio da sala de tal forma que Sotero se encolheu no sofá. Agora, o silêncio inquieto do homem se sobrepunha ao silêncio preguiçoso. Estavam ali, aguardando o desconhecido.

– Olá meus anjos, desculpem a demora. Eu só preciso confirmar o nome de vocês – disse a moça ao entrar na sala de espera com a prancheta na mão. – Sotero é…

– Sou eu! ‘Tô’ aqui.

– A então você é o…

– Eu não sou o Sotero, ainda bem. Meu nome é…

– Não importa, já achei aqui na lista. Só faltavam vocês dois. Vocês podem me acompanhar? – disse, e sorrindo virou-se voltando para o corredor por onde caminhou.

Eles a acompanharam, não tinham outra opção. O homem perguntou aonde estavam indo e teve como resposta que a equipe de triagem iria ajudá-los, afinal o caso deles era comum e fazia tempo que eles tinham decidido como resolver esse tipo de problema. Bastava que ouvissem as propostas e optassem por alguns dos planos que lhes seriam oferecidos. Ao entrarem na sala se depararam com um grupo pretensamente heterogêneo sentado em volta de uma mesa oval de reuniões. O homem já tinha passado por salas assim em sua vida, longas mesas ovais com cadeiras de rodinha e confortáveis assentos de couro. Um projetor de vídeo no teto direcionado para um quadro branco; revestimento de madeira em cerejeira nas paredes, um pequeno frigobar retrô, um cavalete com grandes folhas de papel rabiscadas. Aquilo não era nada novo pra ele e remetia a um tempo que não vivia mais desde que mudara de emprego. Sotero e o homem sentaram-se nas cadeiras localizadas ao meio da mesa, opostas à porta que entraram. Todos ali sorriam para os dois e na ponta da mesa, próximo ao quadro branco, um homem com aparência de uns 30 e poucos anos os seguia com os olhos, enquanto os lábios exageravam um sorriso e as mãos brincavam com o controle remoto do projetor de vídeo. Ele foi o primeiro a falar.

– Bom, primeiramente eu quero me apresentar, meu nome é Guto, eu sou o team leader dessa equipe. Eu sei que é estranho pra vocês que morreram e agora estarem aqui com essa gente aqui sorrindo, mas não pensem mais na vida que vocês tiveram. Estamos aqui pra que vocês escolham como vão mudar o futuro de vocês mesmos. Eu queria apresentar a equipe e fazer um breve overview da situação e dos planos que nós temos para oferecer pra vocês. Bom, eu vou começar pela Paulinha que é…

– Calma, espera. – interrompeu o homem – Explica primeiro essa história de estar morto.

Guto escapou uma risada, mexeu nos óculos e disse:

– Eu achei que a Jeniffer tinha explicado que vocês morreram.

– Sim, ela disse que estávamos mortos, só que isso não faz sentido.

– Veja, o acidente com o ônibus de vocês foi bem sério. Ninguém sobreviveu, até porque vocês caíram de uma altura considerável da Serra das Araras e as novas diretrizes do conselho dizem que nesses casos não pode haver sobreviventes. Isso gera manipulação da mídia terrena, aí aparece um ou outro querendo justificar os motivos, atribuem a essa ou àquela fé. Ficou decidido que não iríamos mais interferir, salvo nos casos realmente complexos, mas isso não está mais nos nossos objetivos; para nenhuma das frentes partidárias convém isso.

Sotero continuava com aquele olhar de desinteresse, era só aquele jeito dissimulado de se apresentar como opositor ao todo, mas que na verdade era só encenação. Por dentro estava se remoendo em dúvidas, mas gostava de fingir-se conhecedor de tudo e isso lhe dava uma fama de estar sempre certo. O homem por sua vez apertava os olhos incrédulos enquanto balbuciava um espremido inconformismo na sua fala.

– Como?

– Como o quê? O acidente? Ah, foi simples, vocês estavam viajando de madrugada a pista estava escorregadia; o motorista um pouca mais rápido que o limite da pista, perdeu o controle numa curva e o ônibus tombou ladeira abaixo.

– Não! Como é isso aí de diretrizes, planos… Não faz o menor sentido isso. Eu nem acredito em vida após a morte.

– Querido, eu sei o que você está passando, a gente vê isso todo dia. – interrompeu Paulinha – A gente tá aqui pra te apresentar as melhores propostas de vida após a morte, é bem tranquilo, fica sossegado. Depois que vocês escolherem, e eu espero que vocês apoiem a minha ideia, tudo vai se normalizar.

O homem olhava pra ela inconformado. Que raios de propostas ela estava falando? Aquilo tudo era um absurso. Segurando um riso nervoso e passando a mão na boca seca, disse:

– Vamos por partes. Eu não te conheço, não me chame de querido. Segundo que eu não acredito em vida após a morte, isso não existe. Morreu acabou, é simples.

– Rapaz, eu até concordo com você, mas deixe a moça ali dizer o que é, meu amigo – interrompeu Sotero.

– Pelo sol que nasce todo dia! Cala a boca Sotero! Você se diz ateu! Como você vai acreditar nisso?

– Deixe a moça falar, ‘se sossegue’.

O homem olhava inconformado para Sotero. Não que a desfaçatez dele o surpreendesse, mas a conivência com o inimaginável da situação. Ambos tinham isso em comum, a descrença na vida após a morte, ou pelo menos isso era algo que o homem acreditava de fato e não apenas fingia, como Sotero. Havia um silencio na sala enquanto o homem olhava ao colega de exéquias.

– Então – disse Paulinha sentada e apoiando um dos cotovelos sobre a mesa enquanto o corpo curvava-se em direção do homem – é simples, vocês estão mortos, até o seu amigo já entendeu isso. Só você está complicando a questão.

– Eu sei que pode não parecer o melhor dos cenários, mas você precisa entender que isso não tem como mudar. – continuou Guto após a fala de Paulinha – A morte existe, ela está aí, e você precisa escolher qual a sua posição em relação aos planos pós morte.

– Eu não acredito em vida após a morte! – berrou o homem – Será que vocês não entendem isso? Agora vão me dizer que eu sou obrigado a aceitar isso? Que se eu não aceitar eu vou pro inferno?

– Bom, deixe-me explicar alguns pontos. – ponderou Guto – Primeiro que não existe inferno, ou melhor, já existiu isso no passado, mas foram outros tempos em que a gestão era separada por regionais. Cada grupo governava uma regional, mas era uma bagunça aqui em cima, por isso a coisa nunca andou direito. Então foi decidido por um governo de coalizão e o inferno acabou, ou melhor, os infernos acabaram. Veio todo mundo pra cá e é através desse governo de coalizão que conseguimos manter a gestão dos recursos. Gomes, você ainda pegou uma época que existia inferno né?

Um homem no canto da mesa, de corpo esguio e roupas sem graça, respondeu.

– Aham, sim Augusto.

– O Gomes não se acostuma a me chamar de Guto; esquece a hierarquia por favor, somos do mesmo team. Gomes, conta pra eles como era na época que havia inferno.

– Era uma bosta.

Um silêncio úmido que precede a gargalhada aprontou-se. Rapidamente Gomes continuou antes que alguém o criticasse ou que começasse a rir.

– Desculpa, eu não quis criticar ninguém aqui que era do inferno, é parente ou convive com alguém que era. Eu quero dizer da questão técnica. Veja, da mesma forma como cada um de nós tinha a nossa agenda espiritual pós morte, tínhamos que manter as diferentes agendas de inferno. Aí você imagina, eu ainda peguei a época das cruzadas, caramba, era cristão de um lado, islâmico do outro, judeu… Cada um com seu céu e inferno. Aí, dentro do inferno os caras também não se entendiam, cada um queria fazer mais terror que o outro, a máquina não andava, sabe. Sem contar quando teve a dissidência do pessoal depois do Lutero. Não estou fazendo crítica não, quem conhece a minha história sabe que eu também apoiei o pessoal protestante na reforma constitucional, poxa. Enfim, eu não quero me alongar muito mais, até porque pro pessoal dos pequenos partidos essa questão de inferno não estava ajudando, a gente ia ter que aumentar muitos recursos se isso continuasse. Foi melhor juntar todo mundo mesmo. Tudo bem, tem uns aí mais chatos que ficam com um purismo de que com a coalizão a gente teve que ceder nas nossas crenças. Tivemos? Sim, eu não vou mentir, mas foi pra gerir melhor. Essas denúncias de que a gente é conivente com algumas coisas erradas é apenas boato. O importante é o seguinte: foi depois desse governo de coalizão que ninguém mais precisou sofrer, a gente providencia tudo pra vocês.

Não há mais como explicar o espanto do homem, ele ouvira tudo e seus olhos saltavam enquanto sua mandíbula estava tão escancarada que era possível ver suas amídalas.

– Bom, acho que o Gomes deu um bom panorama da situação. Só quero deixar claro para vocês que chegaram agora que, caso algum de vocês venha a exercer alguma função de apoio futuramente, faz parte da nossa carta de compromisso com o pessoal do inferno a manutenção da propagando do mesmo lá na Terra. Acho que isso é claro pra todos. Aqui tem problemas? Tem. Deixar o inferno voltar a ativa é ruim? É ruim porque com eles o diálogo sempre é mais difícil. Eles estão felizes com a aposentadoria deles, ninguém precisou prestar contas com o que fez no passado, está tudo certo. Então vamos manter isso aí, compreendido? Acho que podemos fazer as apresentações das religiões, e se vocês não tiverem dúvidas podem escolher e nem precisaremos fazer o break, certo? Paulinha, você quer começar pela sua?

Paulinha, com seus cabelos cacheados e a pele bronzeada, se levantou. Aquele vestidinho de alcinhas exaltava seus ombros perfeitos. Ela rapidamente explicou que era da ala progressista do protestantismo, explicou as vantagens de quem ia para o pós-morte protestante. Depois dela foi a vez de Kaled explicar as vantagens do budismo; sequencialmente Sying e seu sotaque chinês explicou porque o islamismo era uma boa opção, que eles não deviam se prender aos conceitos terrenos, que aquilo era uma plataforma de campanha como a das demais religiões e que no final no pós-morte havia um consenso pelo bem comum. E assim foi com mais outros cinco participantes até que o homem não se aguentou e interrompeu a fala de Radesh; que defendia o candomblé como opção.

– Chega, eu não vou mais ouvir isso. Eu nunca acreditei em nada disso. Como é que eu vou embora daqui?

– Calma – interveio Guto – espera todo mundo se apresentar..

– Calma nada! Eu não vou ouvir mais nada! Isso é um absurdo!

Finalmente Sotero se moveu da cadeira, colocou a mão esquerda na mesa e com o indicador direito apontou para Paulinha, antes de falar:

– Nessa tua coisa mais progressista aí como é que é? Tá liberado beber uns vinhos, pode fazer sexo?

– Sim, pode, a gente pede um pouco de moderação, mas pode.

– E na tua Sying? Aquela coisa de ter um monte de esposa me esperando vale pra mim também?

– Sim Sotero, mas eu tenho que recordar que o álcool não é aprovado em nossos costumes.

– Rapaz, eu até pensei em ir pro Candomblé, mas aí eu me pego pensando que a gente tem mesmo que pensar que o poder não pode cair em mãos erradas e não adianta se aliar em quem tem a ideia mais certa, só que está longe do poder. Com todo perdão, por favor, me entenda amigo, a questão é que me parece que pra fazer o bem da massa a governabilidade é importante mesmo, também penso assim. Se for pra acabar com a hegemonia desses grupos oligárquicos e segurar a ameaça do inferno voltar é melhor se aliar a quem está no poder e não é desse coronelismo que prevaleceu no passado. Também não adianta ficar no discurso, que eu até concordo, mas que na prática não se sustenta. Temos que fazer a revolução estando dentro do poder. Então eu vou é lacrar no grupo de Paulinha. Onde é que assino?

Paulinha abriu um sorriso, levantou-se e abraçou Sotero. Lembrou-o de que mesmo sendo de religiões diferentes, todos agora estavam lutando por um bem comum, que era importante essa compreensão da importância da coalizão, que só assim estava se estabelecendo um período próspero no pós-morte. Sim, de fato trazer as pessoas do inferno para viverem juntos não era um ponto convergente entre todos, mas todos estão mais felizes. Acordos precisam ser mantidos pelo bem de todos.

As pessoas da mesa batiam palmas. O homem estava perplexo.

– Sotero, é simples, eu nunca escondi que te acho um canalha, mas isso é demais! Como assim?

– Rapaz, num dá pra ficar em cima do muro, isso é coisa de alienado, de elitista.

– Mas você tá indo contra o que você dizia defender.

– ‘Tô’ não, sempre acreditei na revolução dando poder e igualando os homens, é isso. Se pra isso a gente tem que fazer alianças, que se faça.

Na mesa alguns sussurravam sobre aquele diálogo até que Guto falou:

– Veja, o Sotero tomou uma decisão. Não dá pra ficar em cima do muro, querer bancar o isento nessa hora, fazer críticas e manter-se preso a isso, é bobagem. É hora de trabalhar em prol de uma gestão que pense em todos.

– Eu não estou em cima do muro! Eu estou defendendo as minhas ideias, e as minhas ideias são de que quando morre tudo acaba. Eu quero acabar, é simples.

– Esse papo de acabar tudo é uma grande bobagem meu amigo. – interferiu Gomes – Eu já vi isso no passado, essa coisa rebelde boba de querer morrer em definitivo. A máquina não poder parar, ela continua. Se agora a gente controla a máquina, não dá pra ficar sem tomar uma posição. Ou você está conosco ou você está com o que representa o passado, o oposto.

– Como assim? Não existe mais o oposto! Vocês se juntaram, decidiram o que é melhor pra vocês, e não permitem que eu queira manter a minha liberdade de escolha? Eu escolho morrer, não quero isso, simples.

– Olha, esse seu discurso é bem nocivo sabe, me dá até medo. – falou Paulinha.

– O quê? Medo?

– É, essa coisa de ser isento, de não querer tomar uma posição. Isso é caminho pra quem é pró inferno. Não suporto isso. Começa assim e depois diz que só quer a sua ideia, que o resto tá errado.

– Eu tenho posição! Eu não sou pró inferno, de onde você tirou isso? Pelo contrário minha filha, pelo contrário!

– Olha, vocês estão vendo? Agora ele já tá esbravejando, está faltando o respeito comigo. É sempre assim, esse pessoal é que dá mais trabalho, começa com esse papo de criticar tudo, de só apontar pequenos defeitos e transformá-los em uma mentira enorme. Começam assim e depois mostram as garras. São piores até que os assumidamente pró inferno.

– O quê? – gritou o homem completamente em choque. – Você está dizendo que eu sou pior que aquilo que você deveria combater?

A situação estava tensa, alguns pediam calma, que bastava conversarem um pouco mais, que se desse um pouco mais de tempo e ele se convenceria por uma ou outra religião. Que ele precisava entender que era necessário o poder ser mantido dessa forma, que as religiões tinham que se manter diferentes para atender os anseios das pessoas na Terra, mas que ninguém sabia como era governar o metafísico. Que se deixassem cada um escolher como viver o pós-morte com a possibilidade de acabar com a vida em definitivo, algumas religiões poderiam se extinguir, e que isso já acontecerá no passado e não era uma coisa democrática.

Ficaram nesse debate por quase 1 hora. O homem não cedia seus ideais. Era contrário ao fato de ser obrigado a viver eternamente sob o julgo de alguém, correndo o risco de mudanças de bastidores que pudessem mudar aquela ordem estabelecida. Ele simplesmente não acreditava naquela ordem. Não havia acordo.

Guto pediu a palavra e disse que ia consultar um grupo oposicionista. Sotero saiu da sala e foi direto para o seu plano de pós-morte. O homem voltou a aguardar na recepção.

– Pessoal, eu falei com um dos influencer da oposição. – começou Guto – A questão é que eles aceitam dar uma solução pra esse babaca. Só que é assim, depois vem a conta. Eu vou ter que colocar um deles dentro de algum povo aí que vocês administram, mas isso a gente pode ver depois. Vocês estão de acordo?

A decisão foi unânime.

A moça que atendera o homem no começo do processo apareceu na sala de recepção e pediu que ele a acompanhasse. Eles caminharam na direção oposta a do corredor que levava para a sala de reunião. Chegaram numa porta de aço que foi aberta com um crachá da moça. Ao entrarem, um senhor na casa dos 50 anos trajava uma camiseta apertada junto ao abdômen, avantajado pelo tempo e pela farta comida. O senhor levantou-se da cadeira, veio até eles, e disse:

– É esse o chato? O em cima do muro? O causador de discórdia?

– É sim. – respondeu ela.

– Deixa comigo. Rapaz, só me faz um favor. Tira a roupa, entra ali naquela cápsula, fecha os olhos e tudo vai acabar.

– Vocês vão me matar?

– A gente vai resolver o problema.

O homem despiu-se, entrou na cápsula e fechou os olhos. O senhor então girou alguns controles, digitou alguns números no teclado e fez o corpo do homem desaparecer.

– Não te incomoda mentir assim na cara limpa? – perguntou a moça.

– Mentir não me incomoda, já faz tanto tempo que eu faço isso.

– Eu sei, mas ele achou que ia morrer de vez, agora você está mandando-o de volta pro corpo dele. Ele não vai lembrar de nada? – perguntou a moça.

– Nada. A sorte é que a equipe de resgate tá chegando agora no ônibus capotado. Ele vai ser resgatado, vai ficar em coma um tempo e quando acordar o que vai ter de gente dizendo que foi milagre ou sei lá o que, não quero nem pensar. Ou ele vai se convencer sozinho ou vão convencer ele, mas lembrar daqui ele não vai. O importante é que ninguém saiu perdendo.

 

                                                                                              Luiz Franco

Adelaide, South Australia

13 de outubro de 2018

Originalmente publicado no site www.sosnavemae.com.br

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