Meu pai faleceu em outubro de 2016, vivi com ele diferentes sentimentos e relações ao longo do tempo que tivemos juntos. Costumava dizer que era filho de pai velho, já que ele estava para completar 40 anos quando nasci. Tenho 42 anos e meus filhos já estão com 26, 13 e 8 anos e eu acreditava que a minha relação com meus filhos era diferente da minha relação com meu pai, recentemente descobri que não.
Numa conversa com minha mãe, poucos meses atrás, veio novamente aquela percepção de como nossos olhares divergiam e convergiam sobre a figura dele em diferentes pontos e, como ainda estamos o desvendando. Foi nessa conversa recente que cheguei a conclusão que meu pai não era um homem de diferentes personalidades ou personas, mas sim um homem de diferentes tempos.
Meu pai era o presente com minha mãe, ele acreditava e buscava fazer o possível e o impossível para dar a ela uma vida melhor, uma vida diferente. Tinha como objetivo dar à esposa uma vida nova, livre das amarguras financeiras que vivíamos nos anos 80. Prometeu ao casar-se com ela em 1973 que daria três coisas: uma faculdade, uma viagem para a Europa e um Maverick. Do seu modo, cumpriu a promessa. Foi ele quem a motivou para voltar aos estudos, passando a não somente trabalhar, mas assumindo um grande protagonismo nos afazeres da casa, como o jantar, as compras e tudo mais que desse a ela liberdade para se focar nos estudos. Voltava do trabalho 50 km distante de nossa casa para fazer o jantar, preparar as coisas para o dia seguinte e ainda a buscava na escola por vota das 11 horas da noite e só então ia dormir, para que no dia seguinte acordasse por vota das 5 horas da manhã e começasse seu dia rumo a fábrica de pisos e azulejos em que exercia sua profissão. Minha mãe deixou de ser dona-de-casa para se formar em Direito, voltou ao mercado de trabalho numa situação completamente distinta da vivia e conseguiu recursos suficientes para viajar para a Europa e ter um carro muito bom, e bem melhor que um Maverick. Meu pai deu a ela as condições de viver o hoje, o presente, em condições muito melhores do que a que ele poderia sozinho prover.
Para meu irmão, meu pai deu o futuro do qual abriu mão ainda antes de se casar. Como já disse anteriormente, vivíamos em condições financeiras não muito satisfatórias, tudo era com muito aperto e preocupação. Meu pai vivia sob o medo de perder o emprego, de não pagar a contas, de não conseguir comprar comida no dia em que recebia o salário pois a inflação tinha um apetite muito maior nas máquinas etiquetadoras dos supermercados. Por essas e outras razões, foi no primogênito que ele depositou e dedicou seus esforços para que houvesse um futuro melhor. Investiu em conhecimento, em experiências e o apoiava de forma incrível para que pudesse fazer uma boa faculdade e ter um bom emprego. Se algo era moderno, era ao meu irmão que meu pai primeiramente apresentava. Os sonhos e objetivos mudaram ao longo dos anos, quase que duas décadas antes de morrer meu pai já sabia que o futuro de meu irmão iria ser diferente do que o dele.
Comigo, meu pai era o passado. Fui o único a ter não apenas um, mas vários apelidos. Ganhei em vida a infância que meu pai não teve, uma vez que isso lhe foi tolhida quando começou a trabalhar nas ruas de São Paulo entregado cobranças quanto ainda tinha 8 anos de idade. A infância não lhe foi tomada, mas impedida de ser vivida no tempo certo e, por isso, deu a mim toda a infância que não usufruiu. Nos chamávamos por diferentes nomes, sempre com muitas risadas e brincadeiras. Eu subia em seus ombros de 45 anos ou mais e batucava em sua careca. Ríamos de tudo, lembro-me até de brincar de carrinhos com ele. Deu-me o lúdico que lhe foi negado, deu o passado que não teve e isso moldou a minha forma de viver. O lúdico, a arte, a brincadeira está comigo até hoje e sou enormemente grato a ele por isso.
Meu pai não teve o passado que quis, era aflito com o presente que tinha e não desejava o futuro ao qual estava destinado. Ao seu modo e com suas forças, deu a nós três os que havia de melhor nos três tempos que tinha, tempos fantásticos e aos quais seremos eternamente gratos.