Não pense que eu esqueci

(ou “o que aprendi no Camboja”)

Em 2018, dias antes de entrar no Camboja, uma amiga me disse para não estranhar “pois todos os cambojanos vão sorrir para você”. Com toda certeza essa foi umas das mais marcantes experiências que tive, todos sorriam, mesmo que a realidade ali não resplandecesse riqueza material. Eu nunca me esquecerei do Camboja, e ninguém deve se esquecer mesmo sem ter estado lá.

Exatos 45 anos atrás em Phnom Penh, na manhã do dia 17 de abril de 1975, a Capital do Camboja era tomada pelo Khmer Vermelho e assistiria ao fim de um conflito que já durava mais de 5 anos. Sob a alegação de que proteger o povo do ataque do exército norte-americano, poucas horas depois, toda a população recebeu ordens de evacuar a cidade pelo período de 3 dias, que depois se tornaram 4 anos. Três milhões de pessoas abandonaram suas casas, seus pertences, suas histórias e deixariam também de ter suas identidades, individualidades e liberdades respeitadas. A ‘Pérola do Sudeste Asiático’, como era conhecida Phnom Penh, e todo o resto país se acabou se fechando como uma ostra.

Os 3 dias se tornaram quase 4 anos, e somente em 8 de janeiro de 1979 com o domínio de Phnom Penh pelo exército vietnamita é que o mundo começou a descobrir as atrocidades ali cometidas pela “Angkar”.

A riqueza da cultura cambojana é incrível e é milenar. Construída durante o Império Khmer que durou do início do século IX até meados do século XV, Angkor Wat é a maior estrutura religiosa do mundo é um claro exemplo de como a cultura cambojana foi e é rica. Quase 400 anos depois do fim do império que governou boa parte do sudeste asiático, em 1953, o país deixou de ser um protetorado francês e voltou a ser independente e de uma riqueza cultural incrível.

O documentário Don’t Think I’ve Forgotten: Cambodia’s Lost Rock and Roll, lançado em 2014 registra a era de ouro da música cambojana. Seus ídolos, suas influências e como era a vida no país antes do regime genocida comandado por Pol Pot que exterminou cerca de 20% da população. Imagine que se da noite para o dia Roberto Carlos e Ivete Sangalo deixassem de serem cantores tão famosos no Brasil para se juntarem a você para trabalhar no campo plantando arroz. E que se você ou eles um dia apenas assobiasse a melodia de alguma música de Raul Seixas e por conta disso fossem mandados para um campo de extermínio. Pode parecer ficção, mas é documental e é sobre isso que o filme trata, entre outras coisas.

Com sua política do “Ano Zero” em que visava a transformação do povo em uma sociedade purificada, livre de qualquer mínima influência ocidental, e um país 100% agrário com a destruição de todas as indústrias, a cultura e a identidade do povo foi reduzida a pó.

Por pelo menos duas décadas após a libertação do povo cambojano do julgo do Khmer Vermelho, tudo que aconteceu na segunda metade da década de 70 não foi ensinada nas escolas, hoje o país mantém a história viva, para que não se repita.

Ter estado num país onde provavelmente houve o maior genocídio praticado por líderes de seu próprio povo na história, principalmente num momento em meu país vivia uma polarização política raivosa em que as pessoas se inflamavam e propagavam ideias puramente odiosas. Viver esse contrate, um país com problemas sociais e que em sua história recente era marcada por matar pessoas que se pensavam ou pareciam pensar ideologicamente diferentes por usarem óculos ou relógio por exemplo, mas que agora sorriam para tudo e todos. E do lado de cá do globo terrestre as pessoas prometendo nunca mais falarem com as outras guiadas pela idolatria a líderes político. Por alguns dias me senti numa espécie de pré ‘ano zero’ do Khmer Vermelho, tamanha era a agressividade das pessoas de cá. Parecia-me que caminhávamos, para qualquer um dos lados, rumo a um país em que qualquer discordância seria tratada com o terror e ódio. Não chegamos e acho que não chegaremos a tanto.

Estamos num momento de isolamento global, temos que ficar em casa. Quarenta e cinco anos atrás os moradores de Phnom Penh foram expulsos de suas casas, perderam sua identidade e o país viveu um período isolamento em relação ao mundo. Aqui vivemos uma disputa pra ver qual é a ideologia mais estúpida e ultrapassada que seguiremos, ou a qual o líder messiânico queremos nos curvar, enquanto lá, quase meio século atrás um país inteiro foi jogado de volta ao neolítico e obrigado a se ajoelhar e sofrer perante um líder que só pensava em si.

Prefiro seguir com o que aprendi com os atuais cambojanos que sorriem.

PS:  Se alguém quiser assistir ao documentário “Don’t Think I’ve Forgotten: Cambodia’s Lost Rock and Roll”, pode entrar em contato comigo.